Cuidar da vida: compromisso nosso de cada dia


Diante de uma realidade em que a vida está vulnerada e da qual, como seres humanos, somos co-participantes, surge a pergunta sobre a importância e a necessidade do cuidado à vida. A preocupação parte do pensamento de que vivemos, atualmente, o fenômeno do descuido, amplamente perceptível e, não raro, visível. Se há inúmeros avanços tecnológicos que nos brindam com uma série de comodidades, tais avanços também implicam uma série de riscos, quando não bem conduzidos. Não poucas vezes, a tecnologia que nos cerca nos lança num mar de engodos e equívocos capazes de anestesiar-nos diante das reais necessidades do viver e conduz-nos a um verdadeiro e catastrófico fenômeno do descuido, claramente marcado pela falta de respeito e responsabilidade para com a vida.



O descuido, lenta e sutilmente, conduz à crise, que se faz entrever nas famílias que, desestruturadas e destituídas de valores, são arrasadas pela violência doméstica, o abandono dos filhos e a convivência com as drogas; na educação descomprometida com princípios e relegada a um papel de reprodução de saberes meramente utilitaristas; nos serviços de atenção à saúde, onde a negligência, acomodação e falta de conhecimento levam, desde cedo, a não cuidar, não promover e simplesmente medicamentar; no meio ambiente que, agredido por poluição e expólio, reage com agressões na forma de desastres climáticos de que todos somos testemunhas; na sociedade como um todo que, perpassada pela cultura da impessoalidade e da violência (que conduz à irresponsabilidade e insensatez), geme por possibilidade de vida que parece não mais ser vista, amada, pensada e sentida.




O descuido, com a crise de valores, verdadeira crise do humano, se faz perceber no concreto da existência humana, onde, a nível de Brasil, as notícias são assustadoras: os medicamentos são a maior fonte de intoxicação, constituindo-se na principal causa de óbitos conforme a Fiocruz e a Sinitox (dados de 2009). As principais causas são o excesso de consumo, a interação medicamentosa, a falta de conhecimento sobre as contra-indicações e automedicação (sabe-se que dos medicamentos comercializados no Brasil, apenas 1/3 é prescrito por profissionais). Conforme Maciel, o Brasil é o 4º maior consumidor mundial de medicamentos e, conforme os sistemas nacionais, as regiões Sul e Sudeste concentram 80% das intoxicações por remédios. Do total dos casos, 25% acontecem com crianças menores de cinco anos (é a faixa etária mais atingida!) e, só no Rio Grande do Sul, crianças de 1-4 anos correspondem a quase 40% das vítimas. Na automedicação, para citar-se um exemplo, o Tylenol/Paracetamol e o Cataflan/Diclofenaco são os medicamentos mais consumidos na infância por pais que, supostamente com a melhor das intenções, querem cuidar de seus filhos. Ambos os medicamentos não são recomendados para crianças menores de 12-14 anos de idade.



Se são preocupantes os dados referentes à medicalização, não menos preocupante são as informações acerca de agrotóxicos, onde a irresponsabilidade beira o caos e o respeito à dignidade humana parece inexistir. Eles estão entre as três maiores letalidades por agente tóxico, sendo que as intoxicações por agrotóxicos continuam sendo o caso mais recorrente. Nos venenos, belamente apelidados de “agroquímicos” (talvez para não causar suspeita?) utilizados nas lavouras, de onde provém o alimento de que nos servimos, estão presentes traços de arsênico, mercúrio e cádmio, entre outros. Considerando-se que mais da metade dos alimentos da dieta básica dos brasileiros provêm da agricultura familiar, os agrotóxicos definem um quadro de saúde ou de doença através da alimentação. Sabe-se que o arsênico, só para citar um deles, causa problemas nos sistemas respiratório, cardiovascular e nervoso, o que pode estar associado à fadiga, astenia, dores musculares, cefaléia, diarréia ou constipação e câncer. Os pesticidas, desfolhantes, inseticidas, herbicidas e venenos são suas principais fontes de contaminação.




No que tange à alimentação, vemo-nos, igualmente, literalmente “bombardeados” com informações não menos estarrecedoras. Hábitos saudáveis foram sendo, paulatinamente, substituídos, com amplo apoio midiático. Aos poucos, instalou-se a cultura da troca do integral pelo refinado e do natural pelo artificial num ato de total insensatez. Um dos hábitos mais nocivos é o consumo de refrigerante, razão porque julgamos ser pertinente uma abordagem no presente artigo. No Brasil, as latinhas de refrigerante não são fabricadas conforme os padrões internacionais exigem. Além de alumínio, elas contém mais 12 metais altamente perigosos, como manganês (relacionado ao mal de parkinson), cádmio (causador de psicoses) e chumbo (causador de câncer). O refrigerante, por si só, elimina potássio do organismo, sendo esse um importante mineral para condução dos impulsos nervosos, regular os batimentos cardíacos e converter a glicose em glicogênio (o que significa pique e energia para as mais diferentes tarefas no dia-a-dia). Carência de potássio, além de complicações cardíacas, pode ocasionar fraqueza muscular, náuseas e fadiga crônica. Pesquisas apontam sua relação com o aumento de colesterol, casos de depressão, ansiedade e diabetes. Além disso, conforme dados do Pro-teste 2009, os refrigerantes contem benzeno, substância comprovadamente cancerígena.




Conforme o Instituto Nacional de Câncer (dados de 2009), o câncer é, no Brasil, a principal causa de morte, por doença, na faixa etária de 5-18 anos. Isso nos leva a refletir sobre o que está a acontecer, de tão funesto, a ponto de ceifar tão tenras vidas. Pesquisadores acreditam que um dos importantes motivos da elevada incidência de câncer na atualidade é o aumento da contaminação por metais tóxicos como cádmio, níquel, mercúrio, arsênico e o chumbo. Não obstante, considerando-se que, conforme Bontempo, grande parte das doenças modernas tem por base causas nutricionais, o olhar volta-se, também para outro fator. Conforme os médicos P.V. Marchesseau, Paul Carton, Pierre Delbet e G.D. Campbell, alimentos refinados são a principal causa de novas doenças, sendo a industrialização alimentar a responsável pela atual decadência biológica e pelo aumento da incidência de doenças degenerativas, o que se torna perfeitamente compreensível, se considerarmos que os produtos tecnológicos contem, em média, apenas 18 nutrientes se comparados aos orgânicos, que contem cerca de 48. Ressalta-se que os 3 maiores vilões são a farinha, o sal e açúcar refinados! Soma-se, a isso, o fato de que, aliada ao sedentarismo - considerado o mal do século – a alimentação industrializada conduz à obesidade, considerada a marca oficial da atual civilização.



Enquanto o cuidado vai sendo, lenta e sutilmente, olvidado e conduzido ao ostracismo pelo tecnicismo e seus aliados, algumas vozes se levantam procurando revitalizá-lo como ethos do humano, essência da humanidade, possibilitador de vida digna e decente. Baseados em Heidegger, afirmamos que o ser humano, em sua legitimidade, é um ser de cuidado. Sua essência encontra-se no cuidado, sendo sua característica singular colocar cuidado em tudo o que projeta e faz. Isso torna o cuidado um fenômeno ontológico-existencial básico, fenômeno que é a base possibilitadora da existência humana enquanto humana. A pergunta de Elliot “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?” parece-nos pertinente dada à atual realidade em que nos encontramos. Se entendermos o conhecimento como organização, “relacionado com as informações e inserido no contexto destas”, percebemos que tem sido difícil integrar nossos conhecimentos para uma adequada condução de nossa vida.




Talvez tenhamos que aprender, de novo, com o pensamento de Hipócrates, cujo modelo médico estava baseado em três pilares, a saber, 1) “Que o teu alimento seja o teu remédio e que o teu remédio seja o teu alimento!” ; 2) “Andar é o melhor remédio para o ser humano!” e 3) “Todo excesso se opõe à Natureza!” e de Hahnemann, que defendia: “Há uma só doença: pensar errado e desejar o falso!”. A sabedoria contida nos ensinamentos desses dois grandes pensadores nos deve servir de inspiração, se quisermos revitalizar o cuidado como sentido e significação de nossa humanidade, pois que, conforme Boff, “o espírito se humaniza e o corpo se vivifica quando são moldados pelo cuidado”.




Já no Antigo Testamento, no texto de Dt 30, a vida e a morte são colocadas como possibilidade diante de opções que temos a fazer, a cada dia, por maiores que possam parecer e por menores que elas sejam. Assim, saúde ou doença dependem das escolhas que fazemos: o que comer e como comer; o que ler, ouvir, falar; com quem e como se relacionar; onde e como ir a algum lugar... A vida é feita de opções a cada novo passo. A fim de optar bem, é preciso pensar bem, o que pode equivaler a dizer pensar certo. Nesse sentido, lembra-nos Freire, “Pensar certo demanda profundidade e não superficialidade na compreensão e na interpretação dos fatos. Pensar certo é fazer certo”. Cuidar da Vida configura-se, assim, numa atitude sempre presente, um compromisso nosso de cada dia a favor da formação humana, baseada em verdadeiros princípios, que nos façam perceber que é no respeito e na responsabilidade que se torna possível restaurar a humanidade do ser.



*Por Ilíria François Wahlbrinck - Bolsista de Extensão da URI - Campus de Frederico Westphalen/RS. Integrante da Coordenação da III Olimpíada de Filosofia do RS, na mesma Universidade.

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